Animais humanos nos meus caminhos

   
   Um dos frutos preciosos que o isolamento da Covid-19 me permitiu - contrario aqui os que entendem que pandemia só gera fruto de sabor amargo - é um raciocínio profundo sobre o comportamento humano. Posso antecipar que, nesta abordagem, o personagem central não é o homem (genericamente falando). É o animal. Aquele que os ditos humanos consideram animal.
   Eu tinha uma persistente impressão. Agora tenho uma definitiva certeza. O animal é dotado daquela empatia que, dia após dia, alguém reclama não existir nos ditos seres humanos. Não conclua que aqui tem alguém escrevendo com amargura. Aqui, fique certo, tem alguém escrevendo com um único intuito: fazer justiça ao animal e pedir socorro de quem possa nos imunizar da nocividade de alguns ditos humanos.
   Vou lhe falar de alguns momentos bem interessantes. Eu e minha Aline, em 2018 (bem antes da pandemia), fomos a Pelotas atraídos pela Fenadoce. Lá vimos doces que jamais imaginávamos existir. Espetáculos musicais. Culinária diversificadíssima. População, descendente dos colonizadores do Brasil (portugueses) e, também, resultante do regime de escravatura que neste país vigorou por longo tempo (negros que hoje ainda buscam lugar na sociedade).
   Maravilhoso acolhimento. Pessoas de todas as origens, diante dos turistas, mostrando o melhor sorriso. Sabe... Lá encontramos um acolhimento que nos fez pensar nas diferenças regionais. Por que Pelotas é tão acolhedora enquanto cidades, bem mais dependentes da presença turística, insistem em se fechar? Idêntico padrão de comportamento encontramos em Rio Grande (cidade portuária a 59 quilômetros de Pelotas). Pessoas das mais diferentes origens com um sorriso irremovível nas faces.
Pelotas... Rio Grande... O Rio Grande do Sul é terra de gente boa. Há, porém, quem seja melhor. E quando falo de melhor me refiro ao cenário da autenticidade. É aqui que começo a tentar uma descrição do "humanismo" dos animais. Sabe... Aquele ponto que poderia ser aperfeiçoado em alguns humanos para serem melhores do que os animais.
   Complicado é, contudo, fazer os ditos humanos dedicarem pelo menos alguns segundos de suas vidas na busca de uma verdade íntima: "Serei eu realmente um ser humano? Sou superior ao animal? Ou será que é minha a sentenciosa condição de animal?" Complicado... Você me entende? A gente luta para ser humano... Mas, de repente, a nossa ação é muito pior do que a dos ditos animais.
   HUMANISMO PALPÁVEL
   Em Rio Grande, além de um colossal espaço de mar e areia branca, tivemos o privilégio da companhia de um cão. Um cão daquele tipo não muito famoso. Um cão originário de muitas raças (assim como a população descendente de negros, portugueses, italianos, espanhóis, franceses, ingleses, alemães...). Isto aconteceu nos Molhes da Barra (ponto turístico famoso da Paia do Cassino).
   O cão, sei lá por que motivo, alcançou eu e Aline a menos de um quilômetro da entrada dos molhes. Seguiu, silenciosamente ao nosso lado, por mais de três quilômetros. Pensamos que o destino dele seria o final dos molhes (encontro das águas do mar no término da pista artificial projetada pela engenharia da navegação). O rumo daquele lindo animal não era o enxergar das águas salgadas da bela Cassino. O rumo daquele meigo animal era, entendo hoje, o nosso rumo.
   O cão hospitaleiro da Praia do Cassino nos deu acolhida idêntica à da população. Se você quiser conhecer povo hospitaleiro visite o sul do nosso estado. Lá está a essência do puro sangue gaúcho. Inclusive nos cães.
   Dia destes, em Não-Me-Toque, num intervalo de almoço (como todo mundo diz), eu e Aline nos vemos, de repente, acompanhados por um cão carinhoso como o dos Molhes do Cassino. Um cão muito parecido com aquele. A diferença está somente na cor. O de Cassino é marrom. O de Não-Me-Toque é branco. O carinho, entretanto, é o mesmo. Um carinho tão significativo que até nos dá a impressão de que é "humano".
   APRENDIZADO VITAL
   Em Rio Grande ousamos pensar que o cão marrom só queria chegar ao final dos molhes. Ledo engano... Cansados depois de alguns quilômetros resolvemos, eu e Aline, desistir da chegada ao mar. O desejo, então, era voltar ao hotel para um descanso porque o passeio tinha sido estafante. Você tem ideia da surpresa que tivemos? Acho que não. Nem nós esperávamos reação tão positiva daquele animalzinho aparentemente desinteressado. Sabe o que ele fez? Ele deu meia volta e continuou nos seguindo.
   Até hoje me provoca indagação... Que motivo teria aquele cão marrom de estar ao nosso lado? Que motivo teria aquele cão de pelo branco, em Não-Me-Toque, de estar ao nosso lado? Se você puder me responda. Eu só posso imaginar que eles viram em nós pessoas que jamais os feririam. Jamais os ofenderiam. Jamais os abandonariam. Jamais os trairiam.
   Fiz um teste em Não-Me-Toque. Convicto de que o cão de pelo branco só estava interessado por alimento pedi, numa lancheria que estava em nosso caminho, um prato bem caprichado. Não para eu e Aline. Um prato bem caprichado para o dócil companheiro que ainda não é inserido no rol dos "seres humanos". O atendente da lancheria também gostou de nós. Esmerou-se na busca do melhor. Pôs luxo no cardápio. Serviu o melhor da casa para o garboso animal. Pensávamos que, a partir dali, o "não humano" ficaria se deliciando com o almoço enquanto seguíamos o nosso destino.
   Fiel realidade... O cão de pelo branco de Não-Me-Toque não saboreou mais do que duas dentadas do merecido lanche. Ao ver o nosso afastamento preferiu a fome do que ficar sozinho. (Autor: Francisco de Campos - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais n° 9610/98)

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