Contabilidade no bar

Rafael Plat, 38 anos, engenheiro civil, decidiu que naquela segunda-feira não iria trabalhar. Mesmo assim saiu da cama bem cedo e, logo, pôs os pés na rua. Queria caminhar, sem rumo, pois acreditava que, assim, colocaria os pensamentos em ordem. A vida em comum que mantinha, já há 8 anos com Margit Peroza, era o motivo da sua inquietação e, inclusive, da ausência no trabalho naquele dia.
No centro da cidade encontrou um bar aberto e aparentemente vazio. Resolveu entrar. O bar não estava vazio. Rafael notou que, nos acentos do balcão, um homem se deliciava com uma xícara de café enquanto uma moça, à sua frente, se preparava para as estafantes tarefas do dia. Ela era, por todos, conhecida como a moça do bar.
- Bom dia! – disse Rafael ao senhor da xícara de café.
Raul Clement, 66 anos, juiz de direito aposentado, gostava de iniciar os seus dias com o delicioso café daquele bar.
- Bom dia! – respondeu Raul ao rapaz que lhe cumprimentara.
- Por que você está sozinho? – perguntou Rafael. Raul falou:
- Eu ia lhe fazer a mesma pergunta. Mas sou eu quem, primeiro, deve dar explicações. Depois, é claro, vou ouvir as suas.
Raul contou que vai àquele bar todas as manhãs. É o lugar onde medita, conversa com pessoas conhecidas e desconhecidas, fica bem informado sobre a vida da cidade e, principalmente, tem a paz de que necessita para fazer a si mesmo toda espécie de confissão.
- Meu caro jovem... Aqui eu me dedico a um balanço dos acertos e dos desacertos da minha vida. Sou, felizmente, narcisista o suficiente para fazer esta contabilidade apontar sempre um saldo positivo.
- Você me parece um sujeito sereno e feliz. – colocou Rafael.
- Da para perceber isso? Sou mesmo. Esse é um dos efeitos do saldo positivo dos meus balanços diários.
- Poxa! Eu nunca fiz um balanço da minha vida. Acho que está na hora de começar. Talvez eu, sem perceber, tenha saído sozinho pela cidade, hoje, com essa finalidade.
Rafael ficou alguns minutos em silêncio enquanto o cidadão ao seu lado sorvia pacientemente o café. Lembrou da paixão ardente vivida, nos primeiros anos, com Margit Peroza. Fez a si mesmo algumas perguntas: Por que eu ainda não me casei com ela? Por que a nossa vida em comum está a me causar inquietação? Por que, mesmo inquieto e possivelmente insatisfeito, eu não tenho coragem para uma separação? Por que, apesar da ânsia por liberdade, eu não consigo imaginar minha vida longe dela?
- Acorda moço! – brincou Raul acrescentando: - Você parece ter dormido, um instante, de olhos abertos.
- Você é um grande observador. Eu não dormi mas caí num inevitável devaneio. Acho que agora sei de que jeito você faz o seu balanço diário de vida.
- Que bom! Parabéns! Você é um cidadão de bem. Merece esse tipo de oportunidade. Nem todos têm o privilégio de se cientificar da importância de uma análise sobre as atitudes de vida. Você é um cidadão de bem.
- Obrigado! Eu vou ser bem redundante. Você também é um cidadão de bem. Notei isso logo ao entrar aqui. Você transmite confiança e uma calma indescritível. Como eu gostaria de ser uma pessoa assim. Raul! Me conta uma história. Hoje tenho muito tempo para ouvi-lo.
- Vou lhe contar a minha história preferida.
Depois de isso dizer Raul se dedicou a um relato completo da vida conjugal que mantém, há quarenta anos, com Ana Baldin Clement. É a sua história preferida. Contou que ainda é extremamente apaixonado pela mulher. Rememorou o momento em que se conheceram... O curto período de namoro (segundo ele: era impossível viver um minuto longe dela)... O casamento... O nascimento dos filhos... A formatura de Fernando e Elisabet (os filhos)... A melindrosa missão de juiz... A aposentadoria.
- Quarenta anos de casamento! Você, Raul, é um recordista!
- Sim... Sou um feliz recordista.
- Me fale dessa felicidade!
Raul não se negou:
- Não pense que, na sua idade, eu escapei do desejo de liberdade... Da vontade de experimentar diferentes aventuras. Da ilusão, inclusive, de encontrar algo mais emocionante do que aquele casamento com uma mulher feita de pura virtude. Eu olhava para Ana e pensava: “Será que ela é mesmo assim tão perfeita ou é este sentimento bobo que me faz só ver o positivo? Seria este amor profundo uma venda que não me deixa enxergar defeitos nesta mulher?”
- Verdade? Você pensava assim? Pois é... É este tipo de pensamento que hoje me tortura – frisou Rafael.
- Moço! Eu acho que você vai sair daqui livre dessas torturas. A minha Ana não tem igual. Eu vou lhe dar algumas dicas para que você encontre a “Ana” da sua vida.
- Amar a minha Ana – começou Raul – não é nenhum favor. É um privilégio. Fui um homem muito tentado... Assediado... Recebi todo tipo de proposta para trocar de rumo. Entretanto, dentro da contabilidade diária que faço da vida, nunca encontrei razão para retirar a fotografia de Ana da minha escrivaninha. Ela foi trocando de idade, envelhecendo como eu, amadurecendo em todos os aspectos... E eu a amando sempre mais.
- É possível manter uma paixão ao longo de quarenta anos? – perguntou Rafael.
- Quando a mulher é Ana isso é mais do que possível. Você merece saber que a minha amada sempre foi pessoa exigente... Caprichosa... Seletiva. Desde o primeiro momento eu vi nela um ser resolvido. Daquele tipo que não se engana. Sabe sempre o que faz. Pensa bastante e, quando parte para a ação, é munida de certezas.
- O que tudo isso tem a ver com a perenidade da relação?
- Moço... Você acha que alguém é louco o suficiente para renunciar ao amor e, até, à admiração de uma “Ana”? Depois que conheci integralmente o conteúdo da minha Ana concluí: “Se um dia ela quiser me deixar eu me ajoelho e suplico que fique. Direi que renuncio a todo pecado que eventualmente esteja a cometer para que se mantenha ao meu lado.”
- Eu estou pensando que isso é uma humilhação. – coloca Rafael.
- Menino... Não se trata de humilhação. Eu considero até uma exaltação. Você tem ideia do que representa ser o eleito de uma “Ana”? A minha Ana, seletiva, me escolheu... Eu sou um premiado... Eu faço o que for preciso para tocar a vida com ela tal qual como sempre. Eu quero, se for preciso, ser humilhado. Mas eu quero a minha Ana para sempre.
Rafael ficou mais alguns minutos em total silêncio. Raul limitou-se a observá-lo. Estava convicto de que uma maquininha de calcular funcionava a toda potência naquela cabeça. Pediu mais um café e ficou a esperar um despertar repentino do falante rapaz.
- Positivo...
Depois de dirigir essa palavra a Raul o inquieto Rafael se despediu e pôs novamente os pés na rua. Desta vez, porém, com o desejo de retorno, o mais rapidamente possível, para casa. Ofegante viu, com colossal alegria, Margit a sua espera na porta. Deu o sorriso mais aberto de sua vida...
- Você é a minha amada... Eu sou um homem de muita sorte... Um premiado. Obrigado por me amar desse jeito. Obrigado por me querer mesmo conhecendo todos os meus defeitos. Obrigado! Margit... Você é a minha amada... Oxalá você me ame, pelo menos, por uns quarenta anos. (Autor: Francisco de Campos - Todos os direitos reservados/Lei dos Direitos Autorais Nº 9610/98)

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